FOLGA #16 CORPO
Querida pessoa: Como vai você diante de tanto assunto sobre o nosso corpo? O seu corpo?
A beleza tornou-se uma tirania, e o processo de busca por ela um fardo. A beleza não é mais uma qualidade natural ou uma virtude, mas uma necessidade exigida pelas forças do mercado.
Naomi Wolf, O Mito Da Beleza.
Vamos viver tudo que há para viver, vamos nos divertir.
Helen Ramos
Como uma pessoa nascida em 1987, eu cresci com a expressão "nossa, você emagreceu!" sendo considerada um grande elogio. Se você tem 30+, sabe como eram as revistas adolescentes, certo? Todas grandes aliadas do desenvolvimento de distúrbios de imagem e alimentares.
Entrei nos anos 2000’s com onze anos de idade, e hoje entendo que naquela época testemunhamos a realidade de que nunca uma mulher era magra o suficiente. E aquelas que eram suficientemente finas e esqueléticas apareceram um tempo depois, revelando distúrbios de bulimia e anorexia.
Dieta da sopa, dieta dos 21 dias, dieta do suco de limão, anfetaminas ilegais, anfetaminas prescritas por endocrinologistas, engolir algodão (nunca o fiz, mas descobri que era um hábito comum entre adolescentes modelos)... enfim, uma lista interminável de possibilidades de autoagressão. E talvez seja muito injusto chamar de auto, porque a pressão estética foi instaurada de fora para dentro, sempre foi e sempre será.
Além das revistas *Capricho* da vida, das próprias professoras da escola dando “toques”, do bullying, das séries de TV com piadas gordofóbicas, no meu caso — e acredito que em mais de 80% das famílias brasileiras — havia a cereja do bolo: eu cresci em uma educação extremamente descuidada quando o assunto era corpo.
Lembro da primeira vez que ouvi da minha mãe: “Quando eu era magra, na época que seu pai ainda gostava de mim como namorada...”. Sim, isso dito hoje parece uma pausa do fim de um capítulo de *Avenida Brasil*, mas era só crescer nos anos 90.
O ideal de amor romântico me foi apresentado nesse menu. Prato principal: caso não sejas magra, o “outro” não vai gostar de você. Para melhorar o cardápio desse trem fantasma dos desafetos, meu pai fazia questão de complementar: “Cuidado com essa barriga, senão ninguém vai te querer.”. Resultado? Fui conseguir fazer as pazes com minha barriga quando percebi que não precisava dela para “provocar” ou enfrentar meu pai.
Mas vamos sair aqui do “beabá” freudiano, porque já basta minha análise para relembrar tanta cicatriz.
Hoje tenho 37 anos e sou uma pessoa com muita saúde (será que sou mesmo?). Exames em dia, massa muscular boa, gordura média, simplesmente amo comer, e acho um grande milagre não ter desenvolvido nenhum distúrbio alimentar. Tento sempre tratar meu distúrbio de imagem, que, sim, esse não teve como passar sem aparecer.
Mas o filme de terror nunca saiu de moda e, às vezes, ele volta — parte 2, o inimigo agora é outro.
Adolescentes gritam “magras” no TikTok umas para as outras, influenciadores mostram ossos no quadril, grandes atrizes e ícones aparecem “cabeçudas” falando que estão bem, no auge da saúde, mesmo a gente lembrando delas com 10 kg a mais, perfeitamente normais e magras.
De um ano para cá, após muito trauma de médicos e de ter pegado ranço de me pesar, de desistir de planos alimentares, eu quis tentar perder peso novamente. Mas dessa vez, eu escolhi um outro caminho: o da performance esportiva. Mesmo que estivesse me contando uma mentira, dizendo que não se tratava de ser mais magra, eu embarquei nessa. Eu tinha voltado de uma viagem de bicicleta e percebi o quanto meu corpo poderia ser potente caso eu cuidasse dele com esse objetivo específico.
Junto a isso, passava por um momento de extrema melancolia e baixa autoestima, então vou ser honesta: os primeiros quilos foram embora na base da tristeza mesmo, mas os seguintes foram com puxar ferro + endocrinologista + psiquiatra + tirar bebida (já voltei, amo minha caipirinha, mas fez toda a diferença na época).
Eu amaria dizer para vocês que pesar 10 kg a menos não fez diferença na minha autoestima. Amaria *mesmo*, porque é assim que eu gostaria que fosse o mundo para nós mulheres. Que nosso peso não fosse a régua do nosso bem-estar mental. Mas não.
Eu me senti bem. Primeiro fisicamente, por experienciar a sensação de conseguir correr, de me sentir mais forte, de sentir minha performance em exercícios físicos melhorar drasticamente, de ver que era possível desejar um muque aparecendo nos meus braços. Mas é óbvio que me senti bem também pelos elogios alheios, por caber em roupas de amigas que antes eu nem tentaria.
A paz existe mentalmente após um processo desse? De forma alguma. Sigo em diálogo constante comigo mesma, engordo e emagreço 2 kg como quem bebe água, e isso é e sempre foi meu corpo. Tenho amigas que vestem 36 e pesam 60 kg, medindo 1,70 m, se autodepreciando e falando que engordaram? Sim, tenho. Assim como tenho amigas grandonas, corpudas, tamanho 50, belíssimas, me relembrando que não é sobre quanto marca na balança, mas como estamos com nosso corpo e mente. Afinal, acredito que meu corpo é a roupa emprestada que tenho para fazer casa na minha alma.
Se você tem esse ímpeto, essa vontade de querer perder peso, eu não vou ser a pessoa que vai desencorajá-la e dizer: “Se ame antes de tudo, menina!” Porque primeiro: que palhaçada é esse de dizer se ame? Gente saí dessa, se amar é difícil pra caramba e isso é construção. Não tem como se amar antes de emagrecer, se amar antes de se relacionar, se amar antes disso ou daquilo. Se amar é processo, caminhada, e como uma boa estudante de psicanálise acredito que precisamos do outro nos amando para que a gente se ame. Às vezes emagrecer vai te proporcionar bem-estar físico e mental. E às vezes você vai emagrecer e continuar carente, cheia de paranoias, péssima das ideias e perceber que não é sobre pesar mais ou menos, e sim sobre fazer nossas travessias de cura da nossa mente, de preferência na terapia.
Eu vejo diariamente essa discussão sobre magreza, do corpo da mulher — e acredito que ainda temos um longo caminho pela frente para alcançar uma verdadeira libertação. Me vigio para não me tornar uma escrava do consumo, reproduzindo discursos que causam extrema angústia. Para quem não sabe, quem mais ganha dinheiro com nossa insegurança é o grande mercado, o capitalismo, então mulheres seguras são um pesadelo para que grandes marcas possam lucrar. Já pensou no poder que é a gente ir contra esse sistema? Cof cof, escreveu Helen, a pessoa que largou um fígado na Sephora.
Verdade seja dita, encontrei no esporte quase diário a melhora para minha tristeza, a força para atravessar situações difíceis, a paz para a maluquice que pode ser minha mente.
Sigamos sendo mais gentis com a gente mesma, mais felizes na hora de comer uma sobremesa deliciosa, que possamos, além de organizarmos nossa rotina de metas nos esportes, também reservar tempo para um hambúrguer com nossa melhor amiga. Que nossa coragem seja para cuidar da gente e, quem sabe também se inscrever em uma prova de corrida ou em um jogo de queimada adulta. É mais sobre se divertir hoje, combinado?
E comecei me chamando de ridícula…
Por Nani Escosteguy
Eu fui ridícula e procurei o significado de auto estima no dicionário do meu filho. É que quando falam nela, a primeira coisa que me vem à cabeça é que, embora eu não tenha o corpo mais padrão, o cabelo mais perfeito, a pele mais bem cuidada, os problemas com a minha nunca passaram (tanto) pela aparência física. Mas então porque sinto ela tão pra baixo muitas e muitas e inúmeras e incontáveis vezes?
Auto estima é substantivo feminino. Já começa interessante por aí, visto que grande parte dos homens, principalmente brancos, heteros e cis, tem auto estima delirante enquanto que a grande parte das mulheres, inclusive as brancas, heteros e cis, encontram as suas no chinelo. Na sola dele muitas vezes.
Na onda do feminismo atual, isso já mudou. Ia dizer que bastante, mas achei exagero. Só que mudou alguma coisa. Ainda assim, a auto estima masculina ganha de lavada da nossa. (E sim, poderíamos falar sobre a construção patriarcal da auto estima, mas esse não é meu rolê aqui-agora, neste texto, nesta Folga)
Mas voltando ao dicionário: “qualidade de quem se valoriza, se contenta com seu modo de ser e demonstra confiança em seus atos e julgamentos.”** Eu ri. Porque eu me valorizo, oras! Na maior parte das vezes, me contento com meu modo de ser. E demonstro confiança - até demais, às vezes - nos meus atos e julgamentos.
Que grande mentira deslavada! Até porque a gente se olha no espelho e se chama de linda, grande gostosa, inteligente do caralho, pqp como você é foda! Mas basta a dispensa de um cara, um comentário desnecessário de um colega, a fofoca de uma amiga, um deslize no trabalho ou na função materna para que nossa auto estima dê uma grande gargalhada de volta e mande um salto ornamental para o buraco de onde um dia ela (achou que) saiu.
A minha mesmo. Ela adora me pregar peças. Às vezes eu consigo ignorar e ela acaba batendo numa mola que a impulsiona de volta pro topo. Ufa! Mas tem momentos… Ah! Tem momentos que o salto é perfeito e ela mergulha num azul profundo. E, assim como no mar, quanto mais se aprofunda, mais escuro fica tudo. E essa água turva toda inevitavelmente transborda em forma de lágrimas, álcool e gelo. Gelo para lidar com a vida, desinchar o rosto, sacudir e levantar porque os boletos não se pagam sozinhos, os filhos ainda dependem de você e cadê que tem tempo pra cuidar dessa profundeza e dar uma de Fênix pra ressurgir melhor, mais forte e inteira? Que caralho a gente permite esse salto pra baixo?
Esse ano tem sido uma montanha russa sem fim pra coitada da minha auto estima. Até tem hora que ela está no conforto e segurança de saber que seu lugar é aqui em cima. (Ou lá em cima, eu diria hoje). Só que basta um tropeço para que ela se abale e mergulhe sem equipamento de segurança, sem boia, sem corda presa no barco. E ficamos assim nesse cabo de guerra que hora puxa pro azul intenso, hora arrasta de volta pro seu devido e necessário lugar.
Aí que estima, também segundo o mesmo dicionário da mochila do filho, é “sentimento de carinho ou de apreço em relação a alguém ou algo (...)” e também “admiração e respeito que se sente por alguém (...)”. Bom, analisando assim, verbete a verbete, é muito louco como uma pessoa pela qual temos afeto, carinho, admiramos, respeitamos consiga fazer - propositalmente ou não - acabar com qualquer afeto, carinho, respeito e admiração que temos por nós mesmas. Não é um absurdo?
Essa semana a Helen me mandou no whatsapp “não deixa ninguém, ninguém mesmo, ter o controle da sua auto estima”. Eu adoraria, amiga e parceira de Folga, eu adoraria. E tento, viu? Me esforço mesmo. Mas acontece de às vezes eu me chamar de ridícula na terceira palavra de um texto. Hoje eu recebi um áudio delicioso de outra amiga que, do nada, por pura e espontânea parceria feminina, me despertou com palavras lindas sobre como me admira e se sente inspirada por mim. E tem a Mari, que sempre me puxa pra cima - nossa amizade é tipo aquela figurinha de uma mulher puxando a outra que puxa outra que puxa outra… e assim segue.
A auto estima precisa disso, alimento. E não tem ninguém no mundo melhor que suas grandes e maravilhosas amigas para te ajudar a encher esse bucho de comida. E se nada, nadica, te convencer, a gente sempre pode lembrar que a auto estima feminina como a conhecemos é uma construção patriarcal - isso há de te dar forças, irmã! Porque nesse ano eu morri, mas nesse ano mesmo eu não morro.
Quero que você se veja com os meus olhos
Por Bertha Salles
Recentemente ouvi de uma Entidade, um Caboclo, que eu deveria ser a maior prioridade da minha vida - Me amar, me priorizar mais que tudo e todos nesse mundo. Até aí, tá. Pode parecer clichê, banal, fala pronta… Mas não para mim, e eu já te conto o porquê.
Em seguida ele me perguntou uma coisa super íntima, que eu não costumo verbalizar com todas as letras não. E dali veio, olhando bem no fundo dos meus olhos:
- "Porquê você se acha feia?"
Na mesma hora, desabei a chorar com a pergunta. Parecia que ele tinha cavucado lá dentro do meu coração, e arrancado esse sentimento que eu tenho tanta vergonha de sentir. E assim que ele puxou pra fora, eu pude respirar e voltar para a superfície de novo.
Ouvir isso de alguém, e ser questionada sobre, me fez sentir um pouco de pena, tristeza de mim, por mim. Porque a gente se maltrata tanto? Porque a gente fala coisas tão terríveis sobre nós mesmas? Coisas que não falaríamos nem para o nosso pior inimigo, sabe?!
E o pior, é que eu sei o porquê.
Eu cresci com transtorno alimentar, comecei a apresentar os primeiros sinais aos 8 anos de idade. Desde aí o meu corpo se apresentava de forma bem inconstante e instável. Em alguns períodos eu emagreci muito, e outros engordava bastante. Desde estar no hospital todas as semanas com a pressão 8/4, quase desfalecendo, até a apresentar índices de colesterol, açúcar e pressão super elevados.
Mas uma coisa não era inconstante. Sabe o quê?
Todas as vezes que isso acontecia era automático, um mesmo retorno, uma mesma resposta.
Ao emagrecer, independente do motivo, elogios. Já ao engordar, críticas e mais críticas, duras e severas sobre mim.
Infelizmente, eu nunca vou esquecer de uma pediatra que me disse aos 12 anos que se eu não emagrecesse, ninguém iria me amar ou querer estar comigo. Ou o meu pai, que dizia que eu era largada e relaxada, apertava o meu braço e a minha barriga em frente aos outros, como forma de me envergonhar e me punir. Porque aos 22 anos fiz um ensaio de fotos nua com um amigo que é fotógrafo, e fui descobrir que uma das fotos era de um grupo de WhatsApp de alguns meninos do colégio que debochavam de mim e do meu corpo, desde àquela época. São tantas situações que eu sou incapaz até de enumerá-las.
É uma merda, é muito frustrante pensar que esse tipo de violência, que tantas de nós já passamos, ainda exista de forma tão latente, mesmo que em nosso subconsciente e chegue até o ponto da gente criar tantos bloqueios e pensamentos intrusivos sobre nós mesmas.
Por mais que eu saiba que esses comentários não me definem, que isso diga muito mais sobre quem comentou do que sobre mim, eles ainda me habitam.
Vejo tantas amigas e pessoas próximas que já passaram por coisas similares, e também falam coisas tão terríveis sobre si mesmas. E é isso, infelizmente, eu sei o porquê dessas falas.
Mas em meio a tantos desabafos vindo do mesmo lugar de dor, eu percebo uma fala mega comum entre eu e essas pessoas, que é a seguinte:
- "Ei, eu queria tanto que você pudesse se enxergar com os meus olhos!"
Olha que lindo isso - Enxergar com os olhos de quem te ama, de quem te vê por inteiro. De quem te respeita, quem te acolhe, de quem te conhece tudo e todo.
Mas eu não desejo que a gente possa se enxergar com os olhos dos outros não, eu desejo que a gente consiga fazer isso, esse mesmo movimento por nós mesmas, sabe?
Para quando você tiver uma folga:
Helen indica:
Assista o documentário: WITCHES, 2024, Elizabeth Sankey no MUBI.
Fantástico, forte, impactante e muito bem montado. Assisti esse doc e jamais esperaria que ele fosse sobre a saúde mental das mulheres puérperas, e sim é sobre isso. Caso queria saber um pouco mais, leia a crítica abaixo:
https://coisadecinefilo.com.br/critica-bruxas/
Para assistir:
Nani indica:
“The Vandalist” (2024) - Noga Erez
Eu não conhecia essa cantora israelense até que o disco mais recente dela caiu no meu Spotify - e não saiu mais. É intenso, divertido e a voz dela é uma delicia. Ótimo para colocar bem alto na sala de casa.
Minina, uma curiosidade que só fiquei sabendo esses dias.
Naomi wolf se tornou uma terrível conspiracionista. Tristíssimo de ver.
O livro Doppelganger da Naomi Klein que saiu ano passado descreve essa trajetória. É um excelente livro, foi recomendado no clube do livro do podcast Calma Urgente e gostei muito da leitura.